O que os programas policialescos têm a ver com a ditadura militar?
Descrição para cegos: ilustração em tons de cinza mostra uma TV antiga em cujo vídeo se veem manchas de sangue – a única coisa colorida na imagem. Arte: Thyago Nogueira-Oficina Sal
Por Mabel
Dias (observadora credenciada)*
Este domingo, 31 de março, marca um período tenebroso da História
do Brasil: os 60 anos do golpe militar, que instaurou por 21 anos (1964-1985)
uma ditadura civil-militar no país. Nesta data, os militares depuseram o
presidente eleito democraticamente, João Goulart e ocuparam o poder executivo,
instalando no Brasil um cenário de medo, censuras, perseguições e violências.
Foi nessa mesma época, anos 60, que surgiram os programas
policialescos. Primeiro no rádio e depois na televisão. Os mais conhecidos eram
O Homem do Sapato Branco e o Polícia Contra o Crime. Nos anos 90,
houve um boom desses programas na TV brasileira, em âmbito nacional e
regional, despontando como líderes de audiência, o Aqui e Agora (SBT), Na
Rota do Crime (extinta TV Manchete), Brasil Urgente (Band) e Cidade
Alerta (RecordTV).
Os militares não eram muito fãs deste tipo de programa e até
mandaram retirar alguns do ar, alegando preservação da família, da moral e dos
bons costumes. No entanto, o conteúdo divulgado por estes programas traz muitas
características - e até apoio - à ideologia da Doutrina de Segurança Nacional,
idealizada pelos militares para poder conseguir simpatia da sociedade e tomar o
poder. Dentre elas, podemos citar, a cultura da brutalidade policial, da
ilegalidade, e do grupo de extermínio, como nos indica Fábio Marton, em seu
artigo sobre estes programas no site The InterceptBrasil.
O documentário Bandidos na TV, da Netflix, ilustra bem este
apoio a grupos de extermínio. Ele conta a história do apresentador Wallace
Sousa, que exibia no programa Canal Livre, no Amazonas, reportagens de
crimes que ele mesmo cometia.
Os programas policialescos tornaram-se os porta-vozes de um
discurso autoritário, reforçando uma moral conservadora e elitista, estampada
na tela da TV e propagada nas ondas do rádio. A pesquisadora Ticiane Cabral
afirma que a base retórica dos valores cristãos e da moral e bons costumes,
utilizada para justificar o uso da força e repressão no período da ditadura
civil-militar é a mesma utilizada nos programas policialescos. Com o surgimento
desses programas na grade das principais emissoras brasileiras, as violações de
direitos começaram a ser reforçadas e divulgadas, e o movimento de Direitos
Humanos estigmatizado como “movimento que defende bandido”, desinformando a
população sobre a atuação dos e das defensores/as dos direitos humanos nas penitenciárias
e casas de ressocialização para adolescentes, por exemplo. Quem não se lembra
do chavão “bandido bom é bandido morto?”.
Hoje, escutamos o “CPF cancelado”, gíria de grupos milicianos e
paramilitares para comemorar a morte de “bandidos” e desafetos, como indica o
pesquisador Bruno Paes Manso.
Um olhar mais atento ao conteúdo dos policialescos identifica a
presença do racismo, machismo, LGBTfobia, desrespeito à presunção de inocência,
violação dos direitos de crianças e adolescentes, tratamento desumano ou
degradante e torturas, defesa da pena de morte, “justiça” com as próprias mãos.
Conteúdos esses divulgados pelos apresentadores e repórteres desses produtos
televisuais, que se tornaram um modelo de negócio lucrativo para as emissoras
comerciais.
Com a visibilidade que alcançam na telinha da TV e nas ondas do
rádio, esses apresentadores e repórteres se candidatam a cargos políticos e
chegam até a se eleger. Pesquisa do Intervozes -
Coletivo Brasil de Comunicação Social revela que nas últimas eleições,
realizadas em 2023, houve um crescimento dessas candidaturas.
O discurso de endurecimento das leis penais, redução da maioridade
penal, defesa da flexibilização do porte e posse de arma para a população,
justiçamento e isenção de responsabilidade dos policiais em ações violentas,
que resultam na morte de civis fazem parte da plataforma política destes
candidatos. Isso te lembra alguém?
O conteúdo dos programas policialescos está no ar há cerca de 60
anos no Brasil, e tem reforçado durante todos esses anos as teses da direita e
da extrema direita brasileira em relação a setores vulnerabilizados da
sociedade, como negros/as, indígenas, LGBTs, mulheres e pessoas em situação de
cárcere, adolescentes que cumprem medidas sócio educativas. A ideologia
reacionária da extrema direita e o conteúdo presente nos policialescos estão
intimamente relacionados e contribuíram para a eleição desse segmento político
nos espaços de poder, seja legislativo ou executivo. Não é à toa que o
ex-presidente da República tinha presença cativa em programas deste tipo, como
o Brasil Urgente, apresentado por José Luis Datena, e o extinto Alerta
Nacional, apresentado por Sikera Júnior.
Se precisamos estar atentos e fortes, como diz a letra da canção,
em relação aos passos dos militares e com a memória ativa sobre o que aconteceu
no Brasil durante a ditadura civil-militar, também precisamos estar atentos/as,
e com um olhar diferenciado sobre conteúdos que são divulgados nesses
programas, pois pesquisas já mostram as inúmeras violações de direitos que eles
endossam.
*Mabel Dias é jornalista, mestra em Comunicação pela UFPB, feminista, observadora credenciada do Observatório Paraibano de Jornalismo, integrante do Coletivo Intervozes, coordenadora adjunta do Fórum Interinstitucional pelo Direito à Comunicação e autora do livro “A desinformação e a violação aos direitos humanos das mulheres: um estudo de caso do programa Alerta Nacional.” Doutoranda em Comunicação pela UFPE.