A quem serve o discurso em defesa da redução da maioridade penal?
Descrição para cegos: colagem com fotos de Verônica Oliveira (à esquerda) e Ana Potyara (à direita), ambas olhando para a câmera |
Por Mabel Dias (observadora credenciada)
“A fala do
profissional foi totalmente equivocada e fora da realidade social, demonstrando
falta de conhecimento do Estatuto da Criança e Adolescente, que deveria ser
motivo de orgulho para todos nós que moramos no Brasil”. A observação é da
conselheira tutelar Verônica Oliveira, que atua no Conselho da região de
Mangabeira, em João Pessoa.
Verônica
refere-se o comentário feito pelo apresentador do Jornal da Band Eduardo
Oinegue, no último dia 13 de junho. Ao comentar uma imagem que mostra uma
criança de 11 anos e mais dois adolescentes furtando bicicletas em um
estacionamento, Eduardo afirma, de maneira enfática: “Esse garoto de 11 anos
tem 15 passagens pela polícia. Se a gente acha que isso é normal, beleza. Se a
gente acha que o Estatuto da Criança e Adolescente está ajudando a criar uma
geração com valores sólidos, vamos em frente, mas que a gente ache alguma
coisa. Mas, para que a gente ache alguma coisa, só debatendo, analisando as
alternativas sobre a mesa, a revisão da maioridade penal é uma delas. A Câmara
dos Deputados já votou, o Senado tá enrolando. Enquanto isso, esse menino vai
voltar para as ruas”. Confira o comentário aqui:
Eduardo Oinegue deveria saber que não podemos “achar” algo em relação a um tema tão complexo e que envolve a vida de uma criança de apenas 11 anos. E sim, buscar medidas eficazes junto aos órgãos responsáveis pelo respeito e cumprimento dos direitos humanos deste público para mudar a realidade delas.
O jornal
apresenta apenas uma nota coberta sobre o acontecimento, e logo em seguida, vem
o comentário do apresentador, que sugere que a redução da maioridade penal é
uma das soluções para a criança. Ou seja, encarcerá-la com adultos, em
presídios superlotados. “Seria mais honesto por parte do profissional da
comunicação, antes de criminalizar a criança, observar quem de verdade violou
direitos para que o menino chegasse a essa situação. Certamente, se tivesse o
mínimo de coerência, perceberia que o maior violador de direitos neste caso é o
Estado, que até hoje não efetivou o Estatuto da Criança e Adolescente (Lei
8.069/1990) em sua integralidade”. ressaltou a conselheira tutelar.
Não é a primeira
matéria divulgada pela Rede Bandeirantes de Televisão que sugere a redução da
maioridade penal em casos em que crianças e adolescentes estejam em conflito
com a lei. Mas esse tipo de proposta sempre é feito quando envolve apenas
crianças pobres, residentes em bairros periféricos. O discurso de Eduardo
Oinegue, como disse a conselheira tutelar, demonstra desconhecimento da Lei
8.069/1990, o Estatuto da Criança e Adolescente, que não foi criado para punir
e encarcerar crianças e adolescentes em conflito com a lei, mas garantir uma
série de direitos, como educação, saúde, alimentação, cultura, moradia, lazer,
proteção familiar, e que até hoje, não são cumpridos pelo Estado brasileiro,
colocando em situação de vulnerabilidade esse menino e tantas outras crianças e
adolescentes.
O artigo 227 da
Constituição Federal brasileira também determina que “é dever da família e do
Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade,
o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, violência, crueldade e opressão.”
Por que o
Jornal da Band e seu apresentador não citaram a Constituição e cobraram do
Estado e dos governantes a prática de tais direitos? Qual o objetivo em
desinformar sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente?
O Jornal da
Band não se preocupou em contextualizar para o telespectador a atual realidade
social de crianças e adolescentes brasileiros, tampouco foi realizada uma
entrevista com o Conselho Tutelar da região onde o fato aconteceu, ou entidades
que atuam pelos direitos desse público, para saber quem são os pais da criança
e o que houve para ela encontrar-se nesta situação. O “jornalismo” brasileiro
tem se guiado por soluções simplistas e imediatistas, que estejam de acordo com
ideias punitivistas, criminalizando e encarcerando crianças e adolescentes,
pobres e negros, com a justificativa que “são irrecuperáveis.”
Sobre reduzir a
maioridade penal, como sugeriu o apresentador do Jornal da Band, a conselheira
tutelar, Verônica Oliveira, afirma que tal “proposta” não é a solução adequada.
“A redução da maioridade penal não é a solução, e o que o jornalista deveria
estar cobrando é o descongelamento de 20 anos de investimentos na educação e
saúde, implementação de escolas em tempo integral, o investimento em uma
política de habitação popular, com áreas de lazer e o fortalecimento do combate
ao trabalho infantil”, reforça Verônica Oliveira.
Segundo a
conselheira tutelar, pesquisas revelam que 98,5% dos meninos que cumprem
medidas socioeducativas foram vítimas de trabalho infantil.
Para a advogada
da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI), Ana Potyara, os meios
de comunicação deviam atuar para conscientizar a população e cobrar do estado a
sua responsabilidade para a efetivação do Estatuto da Criança e Adolescente no
Brasil e outros direitos garantidos por lei.
“O ECA foi criado
como repercussão de um movimento potente, vitorioso e democrático de criação e
inclusão do Artigo 227 da Constituição Federal, que é um grande divisor de
águas da posição da criança e do adolescente na sociedade, deixando de ser um
objeto para ser sujeito de direitos. Além disso, o Brasil inaugura no seu
ordenamento jurídico a doutrina da proteção integral. Diante disso, o movimento
de organizações e atores que trabalhavam na defesa, proteção e garantia de
direitos que estavam fortalecidos e viram a oportunidade de consolidar esse
dispositivo constitucional em uma legislação completa e detalhada pensando em
todas peculiaridades da infância e adolescência, tendo em vista que essas são
as fases mais importantes para formação de um indivíduo.”
Para a representante
da ANDI, reduzir a maioridade penal, como propôs o apresentador do Jornal da
Band, é sinal de que falhamos enquanto sociedade.
“É
incompreensível esse anseio de que adolescentes sejam presos num sistema
carcerário falido, ao invés da ressocialização. O sistema carcerário brasileiro
não educa, simplesmente pune, violenta e segrega cada vez mais uma população já
massacrada, porque esse é o único resultado da redução da idade penal. A
redução da maioridade é tratar como causa o que é efeito. A pergunta a se fazer
é se o Brasil cumpre o Estatuto da Criança e do Adolescente, se garante às
crianças e adolescentes todos os direitos previstos ali.”
De acordo com o
Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes (Conanda), o Brasil
tem a terceira maior população carcerária do mundo e quase 100% dos presos são
pobres, 60% são negros e a maioria é de jovens de até 30 anos, oriundos de
famílias da classe trabalhadora.
Em artigo intitulado “Sobre as propostas de redução da maioridade penal no Brasil”, publicado na cartilha Redução da idade penal: socioeducação não se faz com prisão, do Conselho Federal de Psicologia, a professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Esther Maria Arantes afirma que rebaixar a idade penal terá pouco impacto sobre os índices de criminalidade e colocará adolescentes e crianças em contato com grupos organizados e criminosos, ampliando as possibilidades de reincidência e de conclusão dos estudos e profissionalização. A professora reforça ainda que tal proposta punitivista contribui para o crescimento da população carcerária.
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