domingo, 31 de março de 2024

31 de março

O que os programas policialescos têm a ver com a ditadura militar?

Descrição para cegos: ilustração em tons de cinza mostra uma TV antiga em cujo vídeo se veem manchas de sangue – a única coisa colorida na imagem. Arte: Thyago Nogueira-Oficina Sal


Por Mabel Dias (observadora credenciada)*

Este domingo, 31 de março, marca um período tenebroso da História do Brasil: os 60 anos do golpe militar, que instaurou por 21 anos (1964-1985) uma ditadura civil-militar no país. Nesta data, os militares depuseram o presidente eleito democraticamente, João Goulart e ocuparam o poder executivo, instalando no Brasil um cenário de medo, censuras, perseguições e violências.

Foi nessa mesma época, anos 60, que surgiram os programas policialescos. Primeiro no rádio e depois na televisão. Os mais conhecidos eram O Homem do Sapato Branco e o Polícia Contra o Crime. Nos anos 90, houve um boom desses programas na TV brasileira, em âmbito nacional e regional, despontando como líderes de audiência, o Aqui e Agora (SBT), Na Rota do Crime (extinta TV Manchete), Brasil Urgente (Band) e Cidade Alerta (RecordTV).

Os militares não eram muito fãs deste tipo de programa e até mandaram retirar alguns do ar, alegando preservação da família, da moral e dos bons costumes. No entanto, o conteúdo divulgado por estes programas traz muitas características - e até apoio - à ideologia da Doutrina de Segurança Nacional, idealizada pelos militares para poder conseguir simpatia da sociedade e tomar o poder. Dentre elas, podemos citar, a cultura da brutalidade policial, da ilegalidade, e do grupo de extermínio, como nos indica Fábio Marton, em seu artigo sobre estes programas no site The InterceptBrasil.

O documentário Bandidos na TV, da Netflix, ilustra bem este apoio a grupos de extermínio. Ele conta a história do apresentador Wallace Sousa, que exibia no programa Canal Livre, no Amazonas, reportagens de crimes que ele mesmo cometia.

Os programas policialescos tornaram-se os porta-vozes de um discurso autoritário, reforçando uma moral conservadora e elitista, estampada na tela da TV e propagada nas ondas do rádio. A pesquisadora Ticiane Cabral afirma que a base retórica dos valores cristãos e da moral e bons costumes, utilizada para justificar o uso da força e repressão no período da ditadura civil-militar é a mesma utilizada nos programas policialescos. Com o surgimento desses programas na grade das principais emissoras brasileiras, as violações de direitos começaram a ser reforçadas e divulgadas, e o movimento de Direitos Humanos estigmatizado como “movimento que defende bandido”, desinformando a população sobre a atuação dos e das defensores/as dos direitos humanos nas penitenciárias e casas de ressocialização para adolescentes, por exemplo. Quem não se lembra do chavão “bandido bom é bandido morto?”.

Hoje, escutamos o “CPF cancelado”, gíria de grupos milicianos e paramilitares para comemorar a morte de “bandidos” e desafetos, como indica o pesquisador Bruno Paes Manso.

Um olhar mais atento ao conteúdo dos policialescos identifica a presença do racismo, machismo, LGBTfobia, desrespeito à presunção de inocência, violação dos direitos de crianças e adolescentes, tratamento desumano ou degradante e torturas, defesa da pena de morte, “justiça” com as próprias mãos. Conteúdos esses divulgados pelos apresentadores e repórteres desses produtos televisuais, que se tornaram um modelo de negócio lucrativo para as emissoras comerciais.

Com a visibilidade que alcançam na telinha da TV e nas ondas do rádio, esses apresentadores e repórteres se candidatam a cargos políticos e chegam até a se eleger. Pesquisa do Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social revela que nas últimas eleições, realizadas em 2023, houve um crescimento dessas candidaturas.

O discurso de endurecimento das leis penais, redução da maioridade penal, defesa da flexibilização do porte e posse de arma para a população, justiçamento e isenção de responsabilidade dos policiais em ações violentas, que resultam na morte de civis fazem parte da plataforma política destes candidatos. Isso te lembra alguém?

O conteúdo dos programas policialescos está no ar há cerca de 60 anos no Brasil, e tem reforçado durante todos esses anos as teses da direita e da extrema direita brasileira em relação a setores vulnerabilizados da sociedade, como negros/as, indígenas, LGBTs, mulheres e pessoas em situação de cárcere, adolescentes que cumprem medidas sócio educativas. A ideologia reacionária da extrema direita e o conteúdo presente nos policialescos estão intimamente relacionados e contribuíram para a eleição desse segmento político nos espaços de poder, seja legislativo ou executivo. Não é à toa que o ex-presidente da República tinha presença cativa em programas deste tipo, como o Brasil Urgente, apresentado por José Luis Datena, e o extinto Alerta Nacional, apresentado por Sikera Júnior.

Se precisamos estar atentos e fortes, como diz a letra da canção, em relação aos passos dos militares e com a memória ativa sobre o que aconteceu no Brasil durante a ditadura civil-militar, também precisamos estar atentos/as, e com um olhar diferenciado sobre conteúdos que são divulgados nesses programas, pois pesquisas já mostram as inúmeras violações de direitos que eles endossam.


*Mabel Dias é jornalista, mestra em Comunicação pela UFPB, feminista, observadora credenciada do Observatório Paraibano de Jornalismo, integrante do Coletivo Intervozes, coordenadora adjunta do Fórum Interinstitucional pelo Direito à Comunicação e autora do livro “A desinformação e a violação aos direitos humanos das mulheres: um estudo de caso do programa Alerta Nacional.” Doutoranda em Comunicação pela UFPE.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Agradecemos seu comentário. Ele será publicado depois de submetido à moderação, regra adotada para evitar ofensas e spams.