quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Jogando na chuva e na Globo: o Futebol de Cinco e uma lição sobre acessibilidade?

Descrição para cegos: foto mostra momento do jogo Brasil x Marrocos, em que o brasileiro Ricardinho domina a bola e se esquiva de três jogadores da seleção marroquina. 

Por Joana Belarmino (observadora credenciada)

Pela primeira vez em TV aberta, a Rede Globo o transmitiu a semifinal das paralimpíadas do Japão do Futebol de Cinco, entre a seleção brasileira e a do Marrocos. O fato é inédito.  Nunca a Globo havia emprestado um de seus horários nobres para esse tipo de cobertura. 

Se você não sabe, o Futebol de Cinco é praticado por jogadores cegos, exceto os goleiros. Mesmo privados da visão, os atletas jogam de olhos vendados para assegurar igualdade de condições a todos, no caso de algum ter resíduo visual. 

Algumas lições podem ser extraídas dessa cobertura. A transmissão propriamente dita vem cobrir um vazio de décadas. O paradesporto, e mais particularmente o futebol de cinco e o goalbal, jogos criados para pessoas cegas, existem no mundo desde o pós-guerra. No Brasil, a trajetória bem sucedida desses atletas ganhou impulso a partir dos anos oitenta.  Entretanto, essas conquistas não tinham merecido ainda a cobertura em Tv aberta, e somente nas últimas cinco paralimpíadas as TVs a cabo começaram a divulgar os jogos.

O Futebol de Cinco é um "jogo conversado", como bem disse o jornalista Everaldo Marques, que fez a narração. Atrás do gol, fica o chamador, uma espécie de gandula que enxerga, e que fica batendo palmas, para orientar os ataques dos jogadores. Cada jogador, ao se movimentar na quadra, fica dizendo "voy" (vou em espanhol), para orientar os outros atletas da sua movimentação e assim evitar os choques.

A partida de hoje, para o telespectador, foi também um "jogo explicado". O âncora, a todo momento comentava sobre as regras, os comportamentos, as deixas, para muitos que provavelmente nunca assistiram a uma partida de Futebol de Cinco.

Aqui vem o primeiro apontamento crítico. É certo que Everaldo Marques tentou imprimir emoção e entusiasmo à sua narrativa, mas, para o telespectador cego que assistiu ao jogo, faltaram descrições sobre as jogadas, os ataques, e mesmo sobre as finalizações mal sucedidas.

Até mesmo o gol contra foi pouco compreendido. Houve entusiasmo e emoção, mas o telespectador cego ficou sem saber como aquela jogada foi armada.

Então, uma grande audiência Brasil afora não “viu direito” o jogo, porque trata-se de uma audiência com deficiência visual e que precisa de #Audiodescrição para compreender as cenas visuais envolvidas.

É certo que as coberturas do paradesporto têm progredido. A apelação ao drama, ou mesmo às frases clichês sobre superação, os chamados “discursos capacitistas” têm sido evitados, trazendo-se em geral, um ângulo de cobertura em que os atletas nem são heróis nem coitadinhos. São desportistas envolvidos na categoria do paradesporto,e não querem que sua limitação física ou sensorial seja tratada como símbolo de sofrimento ou de supervalorização dos seus feitos.

A agenda dos coletivos com deficiência, porém, incluindo-se o paradesporto, ainda é negligenciada ou invisibilizada pela mídia. As coberturas dos temas desse coletivo, na mídia comercial, ainda é sazonal, marcada por fatos do calendário, como o Dia Nacional de Luta, em 21 de setembro, ou as paralimpíadas, que ocorrem de quatro em quatro anos.

Nessas paralimpíadas, por exemplo, tem havido uma profusão de pautas sobre pessoas com deficiência nos diversos meios jornalísticos, numa espécie de clarão de visibilidade que depois se apaga completamente.

No resto do ano, essa pauta vai para a gaveta,e a cidadania da pessoa com deficiência é minimizada. A acessibilidade não é discutida nem implementada na maior parte dos conteúdos midiáticos, e o tema passa ao lado do planejamento, das transformações técnicas e da distribuição dos conteúdos jornalísticos.

Mas, precisamos ser otimistas. Se na semifinal do Futebol de Cinco houve muitos escanteios, a cobertura pela Rede Globo marcou seu primeiro gol, preenchendo  um vazio de décadas e décadas e mostrando na prática que jornalistas e produtores de conteúdo precisam prestar mais atenção ao tema da acessibilidade.

Não basta celebrar os feitos e as medalhas conquistadas. A mídia precisa fazer seus próprios gols, produzindo mais conteúdos com acessibilidade, fidelizando uma audiência normalmente ignorada e produzindo de fato jornalismo cidadão.

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